domingo, 8 de abril de 2012

Um Método Perigoso (A Dangerous Method)

Gostei muito do filme. O caso Sabina Spielrein com foco no relacionamento Freud e Jung.
Quem leu "Memórias, Sonhos e Reflexões" com cuidado perceberá facilmente que o capítulo "Sigmund Freud" serve quase como um roteiro, excetuando a presença de Sabina Spielrein. 
Nesse capítulo, encontram-se as cenas dos estalidos na estante, da síncope de Freud diante de Jung na conversa sobre Amenofis IV e a recusa de Freud em contar os detalhes de um sonho para não ameaçar sua autoridade.
Para quem gostou do filme recomendo o livro que, apesar de algumas omissões, é uma biografia autorizada valiosa.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Zygmund Bauman - entrevista



Pensar o contemporâneo pelo viés da Psicologia Analítica, numa aproximação constante com as Ciências Sociais, tem sido muito importante e prazeroso pra mim.
Com muita satisfação divulgo essa recente entrevista com o sociólogo Zygmund Bauman, um dos mais importantes pensadores da contemporaneidade.  O vídeo, que foi disponibilizado generosamente pela CPFL Cultura em seu site,  traz momentos de uma entrevista concedida por Bauman exclusivamente para o público brasileiro.
Uma iniciativa conjunta da CPFL Cultura e do Seminário Fronteiras do Pensamento.
O link da entrevista:



http://www.cpflcultura.com.br/2011/08/16/dialogos-com-zygmunt-bauman/



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Mitologia Grega





                                 

                              Eros






"Eros nasceu do Caos, ao mesmo tempo que Géia e Tártaro. Numa variante da cosmogonia órfica, o Caos e Nix (a Noite) estão na origem do mundo: Nix põe um ovo, de que nasce Eros, enquanto Urano e Géia se formam das duas metades da casca partida. Eros, no entanto, apesar de suas múltiplas genealogias, permanecerá sempre, mesmo à época de seus disfarces e novas indumentárias da época alexandrina, a força fundamental do mundo. Garante não apenas a continuidade das espécies, mas a coesão interna do cosmo. Foi exatamente sobre este tema que se desenvolveram inúmeras especulações de poetas, filósofos e mitólogos. Para Platão, no Banquete, pelos lábios da sacerdotisa Diotima, Eros é um demônio, quer dizer, um intermediário entre os deuses e os homens e, como o deus do Amor está a meia distância entre uns e outros, ele preenche o vazio, tornando-se, assim, o elo que une o Todo a si mesmo. Foi contra a tendência generalizada de considerar Eros como um grande deus que o filósofo da Academia lhe atribuiu nova genealogia. Consoante Diotima, Eros foi concebido da união de Póros (Expediente) e de Penía (Pobreza) , no Jardim dos Deuses, após um grande banquete, em que se celebrava o nascimento de Afrodite. Em face desse parentesco tão díspar, Eros tem caracteres bem definidos e significativos: sempre em busca de seu objeto, como Pobreza e "carência", sabe, todavia, arquitetar um plano, como Expediente, para atingir o objetivo, "a plenitude". Assim, longe de ser um deus todo-poderoso, Eros é uma força, uma Mw» (enérgueia), uma "energia", perpetuamente insatisfeito e inquieto: uma carência sempre em busca de uma plenitude. Um sujeito em busca do objeto."



"O amor é uma fonte de progresso, na medida em que ele é efetivamente união e não apropriação. Pervertido, Eros, em vez de se tornar o centro unificador, converte-se em princípio de divisão e morte. Essa perversão consiste sobretudo em destruir o valor do outro, na tentativa de servir-se do mesmo egoisticamente, ao invés de enriquecer-se a si próprio e ao outro com uma entrega total, um dom recíproco e generoso, que fará com que cada um seja mais, ao mesmo tempo em que ambos se tornam eles mesmos."


"O Amor é a pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda existência a se realizar na ação. É ele que atualiza as virtualidades do ser, mas essa passagem ao ato só se concretiza mediante o contato com o outro, através de uma série de trocas materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e comoções."




"Um dia, lá pela meia-noite,
Quando a Ursa se deita nos braços do Boieiro,
E a raça dos mortais, toda ela, jaz, domada pelo sono,
Foi que Eros apareceu e bateu à minha porta.
"Quem bate à minha porta,
E rasga meus sonhos?"
Respondeu Eros: "Abre, ordenou ele;
Eu sou uma criancinha, não tenhas medo.
Estou encharcado, errante
Numa noite sem lua".
Ouvindo-o, tive pena;
De imediato, acendendo o candeeiro,
Abri a porta e vi um garotinho:
Tinha um arco, asas e uma aljava.
Coloquei-o junto ao fogo
E suas mãos nas minhas aqueci-o,
Espremendo a água úmida que lhe escorria dos cabelos.
Eros, depois que se libertou do frio,
"Vamos, disse ele, experimentemos este arco,
Vejamos se a corda molhada não sofreu prejuízo".
Retesa o arco e fere-me no fígado,
Bem no meio, como se fora um aguilhão" **

** Ode atribuída ao grande poeta lírico grego Anacreonte (séc VI a.C)

Fonte das citações:
Mitologia Grega vol I : Brandão, Junito de Souza - ed. Vozes.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Quando procurar um psicólogo?


Tenho o hábito de buscar na internet os autores que mais gosto para ver o que eles estão produzindo. O mesmo acontece com minhas revistas prediletas. Escolhi essa reportagem por ser de extrema importância. Sempre escuto a pergunta, tanto de amigos, quanto de pessoas que me abordam, sobre o momento certo de procurar uma psicoterapia. 
Não existe o momento certo. Qualquer pessoa, em qualquer momento, pode se engajar na busca de melhorar sua vida, de repensar escolhas, de conhecer a si mesma. Entretanto existem momentos críticos. Geralmente quando vivemos esses períodos não temos dúvida que precisamos de ajuda, mas muito frequentemente falta ânimo ou coragem para procurar  um profissional qualificado. Insistir é preciso. Acredite ... apenas quando olhamos para nossa vida é que podemos melhorá-la. Siga em frente. Procure ajuda.






"A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente."

Soren Kierkergaard 
filósofo e teólogo dinamarquês 
1813-1855



Artigo: É hora de procurar ajuda?
Revista Mente e Cérebro 
edição 216 - Janeiro 2011

Grande parte das pessoas enfrenta, em algum momento da vida, transtornos de saúde mental que podem ser tratados; é o caso da depressão e do estresse, mas a falta de informação e o preconceito ainda fazem com que adultos e crianças sofram sozinhos em vez de procurar um profissional qualificado
por Robert Epstein
© cherry/corbis/latinstock

Vinte e três milhões. Este é o número de brasileiros que necessitam de acompanhamento na área da saúde mental. Desse total, pelo menos 5 milhões sofrem com transtornos graves e persistentes, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse universo encontram-se crianças e adultos que sofrem de patologias como depressão, transtornos de ansiedade, distúrbios de atenção e hiperatividade e dependência de álcool e drogas. Aproximadamente 80% das pessoas que sofrem com esses transtornos não recebem nenhum tipo de tratamento. Mas a situação não é prerrogativa do Brasil. Ainda de acordo com a OMS, um em cada quatro americanos passa por um transtorno psiquiátrico diagnosticável em algum momento da vida. Exageros à parte, no decorrer de nossa existência muitas vezes nos perguntamos se somos mentalmente saudáveis e se não estaria na hora de buscar ajuda profissional. A preocupação faz sentido: de fato, quase metade da população do planeta apresenta algum tipo de transtorno durante a vida. Infelizmente, porém, em cerca de dois terços dos casos os problemas comportamentais e emocionais jamais são diagnosticados e acompanhados, embora muitos deles possam ser tratados de maneira eficaz. Mais de 80% das pessoas com depressão grave, por exemplo, são capazes de se beneficiar significativamente da combinação de medicação e terapia.


O preconceito, porém, ainda é um empecilho para a busca de auxílio especializado. Não raro, ouve-se até mesmo de pessoas razoavelmente bem informadas que “psicoterapia é coisa para louco”. A postura defensiva pode se mostrar de várias maneiras, como pela desqualificação dos profissionais ou de si próprio. Para muitos prevalece, por exemplo, a ameaça de que “o psicoterapeuta saberá mais sobre mim do que eu mesmo; descobrirá segredos dos quais nem suspeito”. Pode também surgir a fantasia onipotente de que “ninguém pode me ajudar”. Ou ainda o pensamento persecutório referenciado na opinião alheia: “O que os outros vão pensar se souberem que vou a um psicólogo?”. Qualquer que seja a forma como se apresente, a resistência não aparece por acaso: em geral, é inerente à própria patologia e tem a ver com o funcionamento psíquico da pessoa. E, infelizmente, às vezes persiste por muito tempo, até que o paciente decida buscar ajuda.








quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Eros na Contemporaneidade


“O terapeuta não pode prescindir de uma discussão com o seu tempo".
                                                    Carl G. Jung




domingo, 4 de julho de 2010

Crime e Castigo: aspectos mitológicos














“Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural, como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno"

Carl G. Jung




Uma obra de arte literária é composta por imagens da fantasia onde a “voz” do autor se encontra refletida. Como vimos anteriormente, essa voz é e não é a sua, embora haja sempre a marca da subjetividade. O conceito de polifonia como uma multiplicidade de vozes no romance de Dostoiévski será considerado, mas não como Bakhtin apresenta, embora acredite que a consciência coletiva esteja sempre presente na obra. A imagem arquetípica é uma manifestação do arquétipo, como síntese que traz a marca da subjetividade e da cultura. Por isso cabe pensar a polifonia como vozes de um discurso que é ao mesmo tempo pessoal (subjetivo) e coletivo (universal e cultural).

Saindo do monoteísmo psicológico e permitindo um olhar politeísta do romance, vamos nos deparar com a possibilidade de Crime e Castigo ser o universo onde diversos deuses atuam e interagem. Semelhante a um sonho, em que todos os personagens do livro personificam aspectos da psique do protagonista. Um politeísmo psíquico onde os Deuses habitam e criam uma trama energética que nos envolve por todo o romance. Um exercício imaginativo onde alguns temas serão ampliados por paralelos mitológicos a fim de amplificar, desliteralizar, mitologizar.

3.1. O Titanismo

“Matei, simplesmente; matei só para mim, para mim apenas...”

(Raskólhnikov)

Pouco se sabe sobre a Titanomaquia, o poema épico sobre a guerra entre Zeus e os Titãs, que se perdeu ao longo da história junto com dois terços da trilogia de Ésquilo sobre Prometeu. Entretanto sabe-se por estudiosos da mitologia como Kerényi e Nilsson, citados constantemente por Pedraza em seu artigo, “A loucura lunar – Amor Titânico”, que os titãs desde os tempos mais remotos eram deuses muito violentos, selvagens e não sujeitos a lei alguma. Não tinham ritos nem cultos, ficando a margem da vida cultural grega. Na Teogonia, Zeus “o de olhar amplo” com seu raio lança os Titãs para o Tártaro, que é na morada de Hades o mais profundo dos planos, para onde os piores criminosos são enviados. O Tártaro não tem chão, sendo um local para onde vão os piores criminosos. É a permanência no caos, caracterizando psicologicamente o sofrimento psíquico caótico e sombrio de Raskólnikov após o assassinato.

O componente titânico para Pedraza é um dos três fortes componentes da natureza humana, junto com a histeria e o Puer que são para ele arquétipos. Nesse sentido, mesmo não podendo ser chamado de arquétipo, o titanismo é uma parte integrante da natureza humana ligada a irreflexão.

“Trata-se de uma energia desproporcional e desenfreada, que se manifesta de diversas formas: na religião, na política, nos negócios, na tecnologia, nas comunicações, na arte. O excesso dos titãs, como foi percebido pelos gregos, pode ser observado em ação no titanismo de hoje” (Pedraza, 2002:13)

Essa idéia do titanismo nos aproxima do conteúdo psicopático que existe em todo ser humano, talvez por isso o romance de Dostoiévski seja tão atual e imortal. Ele aponta um conteúdo universal que existe na psique humana: um conteúdo psicopático, uma área psíquica onde não há imagens, não existe possibilidade de reflexão e por isso não temos sentimentos para avaliar ou traduzir. É o vazio que quando predomina torna a vida de todos nós um mero ato mimético esvaziado de sentido, uma lacuna que é preenchida pelo excesso.

“Kerényi nos ajuda a diagnosticar a natureza titânica e sua retórica: ‘Hybristés e atasthalíe são palavras de difícil tradução, embora seu significado seja claro... Elas disignam a insolência agressiva e sem limites que caracteriza aos titãs’. Numa outra passagem, escreve: Hybris e atasthalíe orgulho desmedido e violência” (Ibid.:13)

Insolência agressiva, orgulho desmedido, ausência de limites, caos, etc.; a adolescência é marcada pelos jargões titânicos e Raskólhnikov se encaixaria muito bem na associação do elemento titânico com o Puer, que em sua viagem celestial exibe seu próprio excesso, sua ausência de limites e sua destrutividade.

A civilização ocidental, segundo Pedraza, está se tornando cada vez mais titânica e se fosse possível atribuir ao titanismo uma configuração arquetípica essa seria o “arquétipo do excesso”. Mas Pedraza considera isso delicado, visto que ao lado do excesso titânico está sua vacuidade, o vazio sem formas, a ausência de significado, a carência de imagens da retórica titânica. “Eu matei, simplesmente; matei só para mim...” diz Raskólhnikov a Sônia. O titanismo que inundava a psique de Raskólhnikov é apresentado por Dostoiévski logo no início da trama, no primeiro sonho de Raskólhnikov, momentos antes do protagonista tomar a decisão de levar adiante seu plano criminoso. O sonho aponta uma invasão do ego por conteúdos titânicos, pela violência e selvageria do cocheiro com sua égua, violência desmedida e excesso, que marcou toda cena e que se configura no momento do assassinato da velha por Raskólhnikov. O cocheiro do sonho após matar de forma bárbara a égua justifica-se com os olhos injetados de sangue e apenas diz: “Era minha!”.

3.2 Puer

“Tu és tudo para nós, toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança...”

(Pulkhiéria para Raskólhnikov)

O puer é o arquétipo da juventude eterna que aparece em vários mitos gregos. Lembro agora do mito de Adônis, nascido da relação entre Mirra e seu pai, o rei Téias. Apaixonamento esse provocado por Afrodite enraivecida de ciúme por Mirra, uma mortal, ter sido proclamada a mulher mais linda da Terra. Mirra está prestes a morrer perseguida por seu pai armado com um sabre, quando Afrodite a transforma numa árvore. O sabre atinge o tronco partindo-o ao meio e nasce Adônis. Afrodite se apaixona pela criança e pede a Perséfone que cuide do menino em segredo. Assim o faz, mas se recusa a devolvê-lo. Com a ajuda de Zeus fica resolvido que ele passaria 1/3 com Perséfone, 1/3 com Afrodite e apenas 1/3 livre para si mesmo.

Raskólnikov é um jovem de feições delicadas “um bonito rapaz, com uns magníficos olhos escuros, o cabelo castanho, de estatura acima da mediana, magro, de muito boa figura”[ ...]“mas era tal o maldoso desprezo que se tinha já acumulado no espírito do rapaz que, apesar de toda a sua delicadeza, às vezes muito juvenil, aquilo que menos o preocupava era o pobre vestuário com que ia pelas ruas”. (Dostoiévski, 2004:5).

Sua mãe, Pulkhiéria Raskólhnikova o idolatrava, sendo ele a razão de sua vida. Uma ligação tão forte entre os dois que a simples menção a ela lhe causava forte impacto. Em determinado momento, Raskólhnikov recebe uma carta de sua mãe pelas mãos de Anastácia, imediatamente quer ficar sozinho e pede que moça o deixe só. Não se sentia bem, estava trêmulo e levando a carta aos lábios, beija-a. Fica um tempo contemplando o endereço numa espécie de adoração e receio. Inicia a leitura:

“Tu bem sabes como eu te quero; tu és o nosso filho único, para mim, e para Dúnia (irmã); tu és tudo para nós, toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança... Adeus, ou melhor... Até a vista! Um abraço apertado, muito apertado, e muitos beijos; a tua até a morte, Pulkhiéria Raskólhnikova.” (Dostoiévski, 2004:41)

Ele termina a leitura com o rosto arrasado de lágrimas, pálido, um tremor nervoso agitando-lhe o corpo. Na dinâmica psíquica mãe-filho, Rodka (como sua mãe o chama) personifica uma imagem arquetípica do Puer, do eterno jovem preso ao mundo materno. Raskólhnikov é um jovem alheio a objetividade da vida prática, vive no mundo interno dele, perdido em seus pensamentos, sua mente vagueia sem rumo, sonolento, indisciplinado, febril, não se importa com o que veste e nem com o dinheiro que chega a suas mãos. A displicência de um Puer que vive como se tudo fosse se resolver magicamente, que ainda não aceita o mundo do pai, não só porque está preso pelo complexo materno, mas por estar em hybris, negando sua condição mortal, na medida em que luta pra ser extraordinário e ganhar a imortalidade histórica de Napoleão. A lei paterna implica em limites, em renúncias e Rodka não quer reconhecer-se ordinário, mortal, temporal.

O senex é a contraparte do Puer, formando o par arquetípico Puer-Senex. Onde um é idéia o outro é concretização. Uma relação onde um não deve existir sem o outro, sob o risco de paralisia psíquica. O velho (senex) precisa do novo (puer) para se renovar. O senex, o mundo do pai, é quem traz limite e ordem para o puer. No caso de Raskólhnikov o pai estava morto. O pai que é fundamental na estruturação do Ego, ele é a lei e quem dá o limite entre o que é permitido e o proibido. Quem personifica a lei na história é Porfíri Pietróvitch, o policial, o homem que quer levar Raskólhnikov para o tribunal, mas não consegue obter a confissão.

Na história Raskólhnikov é órfão de pai, mas ele aparece em sonho, pelo relógio que o filho entregou para a agiota, nas citações da mãe e ainda mais amplamente, “Deus estava morto”. Aceitar o mundo do pai é sair dos braços eternos da mãe e isso Raskólhnikov só consegue após o assassinato. Devemos lembrar que quando ele procura Sônia para se confessar, primeiro abandona a mãe e a irmã. Abandonar a mãe e a irmã é o que permite a Raskólhnikov reconhecer o amor por outra mulher e aceitar as leis do mundo indo para a prisão. Como sabemos o mundo dos tribunais remete ao mundo do pai.

3.3 Demeter/Hécate

“Ela se alimenta da vida alheia, é má; ainda não há muito tempo que mordeu de raiva um dedo a Lisavieta; por um pouco quase lho arrancava fora.”

(Raskólhnikov)

Demeter é uma das representações da Grande Mãe na mitologia grega, que corresponde a Ceres para os romanos. Filha de Cronos e Réia é a deusa da agricultura, da terra cultivada, das colheitas e das estações do ano. Tem sua filha Core raptada por Hades (Deus Infernal) e desesperada sai do Olimpo e começa a vagar por nove dias e nove noites sem comer, beber ou se banhar tamanho o seu sofrimento. No décimo dia encontra Hécate representada como uma deusa anciã, personificando o lado sombrio de Deméter que a ajuda em sua busca. O mito continua, mas o que importa nesse momento é perceber a bipolaridade do arquétipo materno. Hécate é uma deusa ctônica, está vinculada as trevas, ao lado escuro, as qualidades maternas inconscientes, o feminino que habita nas profundezas. Quando Demeter se associa a Hécate encontra sua face subterrânea, seu outro lado, onde a mãe amorosa, zelosa, nutridora, se torna mãe enraivecida e destrutiva, uma deusa da morte, uma bruxa.

No Hino a Deméter, Homero nos mostra a face terrível da deusa quando se torna uma “deusa da morte” impedindo a germinação das sementes, como nos conta:

“Pela filha de cinta delgada afligindo-se em coitas.

E terrível um ano ordenou sobre a terra nutrícia

Crudelíssimo aos homens; o solo nenhuma semente

Levantava, Deméter da bela coroa a escondia..."

(Gramacho,2006:78)

Como a mãe devoradora que impede o filho (semente) de crescer, Alíona Ivânovna, velha agiota, personifica esse lado terrível da grande mãe na polarização psíquica de Raskólhnikov e ele acaba atuando projetivamente matando-a, numa tentativa inconsciente de separação do mundo materno. Ela tinha a posse do relógio do pai de Raskólhnikov, o que nos leva a crer um masculino aprisionado no reino das mães. Essa vivência do mundo do pai era difícil para um puer preso a sua mãe, mas era almejada. Como disse o protagonista de Dostoiévski: “Trago uma coisa para empenhar! - e puxou de um velho relógio de prata, de algibeira. - hei de resgatá-lo depois, porque era do meu pai. (Dostoiévski, 2004: 8)

Diante de Raskólhnikov a usurária, dona de um “olhar inquisitorial”, “velha e má" e que “se alimenta da vida alheia”, assume em seu imaginário traços de bruxa que se alimentava de seus “bens” (os objetos do empréstimo), consequentemente de sua vida. Para resgatá-los, era necessário que a “bruxa” que aprisionava sua alma morresse. Entretanto seu plano falha. Matando a “mãe devoradora” ele mata junto a imagem de uma mãe boa, a mansa e dócil Lisavieta, a irmã mais nova da velha usurária, que soube mais tarde ter costurado os botões de sua camisa.

Entendo Crime e Castigo como uma luta pelo direito de existir, pelo sentido da existência. Desde que sua noiva faleceu, falecimento comemorado por sua mãe (Demeter não quer o casamento), Raskólhnikov entra em um estado caótico. Sua tentativa de emancipação fracassou e ele tenta se libertar da mãe, projetivamente, numa atuação criminosa. O arquétipo é bipolar, no arquétipo materno coexiste a mãe boa e má personificadas na história respectivamente por Alíona (velha bruxa) e Pulkhiéria (mãe de Raskólhnikov). Quanto mais afastado da consciência mais a imagem assume uma forma mitológica. No caso Raskólhnikov não podia aceitar a mãe como má, negava seus sentimentos ruins, sua raiva por essa mãe que o aprisionante que o queria só para si e o transformava na razão de sua vida. Assim os conteúdos negativos foram depositados na velha que assumiu aos olhos do rapaz ares demoníacos e sombrios. Exterminando a velha ele estaria liberto. Entretanto não foi assim que aconteceu, pois o matricídio conclama a presença das Eríneas.

3.4 Orestes e as Eríneas

“Não são simples fantasmas que me atemorizam;

Vejo-as muito bem! Elas estão ali!

São as cadelas rábicas de minha mãe!”

(in Oréstia, 1360)

Como determinou o oráculo de Apolo, Orestes deveria vingar a morte de seu pai Agamêmnon que fora assassinado por sua mãe Clitemnestra. Ele planeja seu crime e o executa, sendo perseguido a partir desse momento pelas Eríneas, as Fúrias romanas, divindades aladas que possuíam asas de morcego e cabelo de serpente. Em Ésquilo são em número três: Alecto, eternamente encolerizada, persegue os criminosos com tochas acesas, Megera, que não deixa o criminoso esquecer os seus crimes cometidos gritando-os em seus ouvidos e Tisífone que açoita os culpados e enlouquece-os.

Orestes assim que comete o assassinato narra o aparecimento das três entidades vingadoras do matricídio:

“Ai! Ai de mim! Criadas! Já as vejo ali,

Como se fossem Górgonas, com roupas negras,

envoltas em muitas serpentes sinuosas!

Não posso mais ficar aqui! Não posso mais!”(Ibid:1355)

Na tragédia As Coéforas, Orestes é perseguido pelas Erínias, sendo o único que as vê: “Não podes vê-las, mas as vejo perseguindo-me e não tenho o direito de ficar aqui!”. Não tem como Raskólhnikov fugir de sua consciência. O coro explica a causa da alucinação de Orestes: “Há muito sangue ainda fresco em sua tuas mãos; vem dele as alucinações de tua mente.” O ataque das Eríneas representa uma desordem psicológica ligada ao horror do crime.

Raskólhnikov não era um psicopata, havia lei internalizada. Uma lei que por mais que ele quisesse negar existia, a lei moral. Vernant comenta em O Universo, os deuses, os homens, que as Eríneas representam o ódio, a recordação, a memória do erro e a exigência de que o crime seja castigado. Raskólhnikov descobre-se ordinário, vivendo atormentado pela própria consciência culpada pelo ato criminoso. As “Eríneas” não o deixam esquecer.

  • Esse texto é parte da minha monografia de conclusão da pós graduação em Psicologia Junguiana - Ana Cristina Abdo Curi / anac333@gmail.com