domingo, 4 de julho de 2010

Crime e Castigo: aspectos mitológicos














“Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural, como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno"

Carl G. Jung




Uma obra de arte literária é composta por imagens da fantasia onde a “voz” do autor se encontra refletida. Como vimos anteriormente, essa voz é e não é a sua, embora haja sempre a marca da subjetividade. O conceito de polifonia como uma multiplicidade de vozes no romance de Dostoiévski será considerado, mas não como Bakhtin apresenta, embora acredite que a consciência coletiva esteja sempre presente na obra. A imagem arquetípica é uma manifestação do arquétipo, como síntese que traz a marca da subjetividade e da cultura. Por isso cabe pensar a polifonia como vozes de um discurso que é ao mesmo tempo pessoal (subjetivo) e coletivo (universal e cultural).

Saindo do monoteísmo psicológico e permitindo um olhar politeísta do romance, vamos nos deparar com a possibilidade de Crime e Castigo ser o universo onde diversos deuses atuam e interagem. Semelhante a um sonho, em que todos os personagens do livro personificam aspectos da psique do protagonista. Um politeísmo psíquico onde os Deuses habitam e criam uma trama energética que nos envolve por todo o romance. Um exercício imaginativo onde alguns temas serão ampliados por paralelos mitológicos a fim de amplificar, desliteralizar, mitologizar.

3.1. O Titanismo

“Matei, simplesmente; matei só para mim, para mim apenas...”

(Raskólhnikov)

Pouco se sabe sobre a Titanomaquia, o poema épico sobre a guerra entre Zeus e os Titãs, que se perdeu ao longo da história junto com dois terços da trilogia de Ésquilo sobre Prometeu. Entretanto sabe-se por estudiosos da mitologia como Kerényi e Nilsson, citados constantemente por Pedraza em seu artigo, “A loucura lunar – Amor Titânico”, que os titãs desde os tempos mais remotos eram deuses muito violentos, selvagens e não sujeitos a lei alguma. Não tinham ritos nem cultos, ficando a margem da vida cultural grega. Na Teogonia, Zeus “o de olhar amplo” com seu raio lança os Titãs para o Tártaro, que é na morada de Hades o mais profundo dos planos, para onde os piores criminosos são enviados. O Tártaro não tem chão, sendo um local para onde vão os piores criminosos. É a permanência no caos, caracterizando psicologicamente o sofrimento psíquico caótico e sombrio de Raskólnikov após o assassinato.

O componente titânico para Pedraza é um dos três fortes componentes da natureza humana, junto com a histeria e o Puer que são para ele arquétipos. Nesse sentido, mesmo não podendo ser chamado de arquétipo, o titanismo é uma parte integrante da natureza humana ligada a irreflexão.

“Trata-se de uma energia desproporcional e desenfreada, que se manifesta de diversas formas: na religião, na política, nos negócios, na tecnologia, nas comunicações, na arte. O excesso dos titãs, como foi percebido pelos gregos, pode ser observado em ação no titanismo de hoje” (Pedraza, 2002:13)

Essa idéia do titanismo nos aproxima do conteúdo psicopático que existe em todo ser humano, talvez por isso o romance de Dostoiévski seja tão atual e imortal. Ele aponta um conteúdo universal que existe na psique humana: um conteúdo psicopático, uma área psíquica onde não há imagens, não existe possibilidade de reflexão e por isso não temos sentimentos para avaliar ou traduzir. É o vazio que quando predomina torna a vida de todos nós um mero ato mimético esvaziado de sentido, uma lacuna que é preenchida pelo excesso.

“Kerényi nos ajuda a diagnosticar a natureza titânica e sua retórica: ‘Hybristés e atasthalíe são palavras de difícil tradução, embora seu significado seja claro... Elas disignam a insolência agressiva e sem limites que caracteriza aos titãs’. Numa outra passagem, escreve: Hybris e atasthalíe orgulho desmedido e violência” (Ibid.:13)

Insolência agressiva, orgulho desmedido, ausência de limites, caos, etc.; a adolescência é marcada pelos jargões titânicos e Raskólhnikov se encaixaria muito bem na associação do elemento titânico com o Puer, que em sua viagem celestial exibe seu próprio excesso, sua ausência de limites e sua destrutividade.

A civilização ocidental, segundo Pedraza, está se tornando cada vez mais titânica e se fosse possível atribuir ao titanismo uma configuração arquetípica essa seria o “arquétipo do excesso”. Mas Pedraza considera isso delicado, visto que ao lado do excesso titânico está sua vacuidade, o vazio sem formas, a ausência de significado, a carência de imagens da retórica titânica. “Eu matei, simplesmente; matei só para mim...” diz Raskólhnikov a Sônia. O titanismo que inundava a psique de Raskólhnikov é apresentado por Dostoiévski logo no início da trama, no primeiro sonho de Raskólhnikov, momentos antes do protagonista tomar a decisão de levar adiante seu plano criminoso. O sonho aponta uma invasão do ego por conteúdos titânicos, pela violência e selvageria do cocheiro com sua égua, violência desmedida e excesso, que marcou toda cena e que se configura no momento do assassinato da velha por Raskólhnikov. O cocheiro do sonho após matar de forma bárbara a égua justifica-se com os olhos injetados de sangue e apenas diz: “Era minha!”.

3.2 Puer

“Tu és tudo para nós, toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança...”

(Pulkhiéria para Raskólhnikov)

O puer é o arquétipo da juventude eterna que aparece em vários mitos gregos. Lembro agora do mito de Adônis, nascido da relação entre Mirra e seu pai, o rei Téias. Apaixonamento esse provocado por Afrodite enraivecida de ciúme por Mirra, uma mortal, ter sido proclamada a mulher mais linda da Terra. Mirra está prestes a morrer perseguida por seu pai armado com um sabre, quando Afrodite a transforma numa árvore. O sabre atinge o tronco partindo-o ao meio e nasce Adônis. Afrodite se apaixona pela criança e pede a Perséfone que cuide do menino em segredo. Assim o faz, mas se recusa a devolvê-lo. Com a ajuda de Zeus fica resolvido que ele passaria 1/3 com Perséfone, 1/3 com Afrodite e apenas 1/3 livre para si mesmo.

Raskólnikov é um jovem de feições delicadas “um bonito rapaz, com uns magníficos olhos escuros, o cabelo castanho, de estatura acima da mediana, magro, de muito boa figura”[ ...]“mas era tal o maldoso desprezo que se tinha já acumulado no espírito do rapaz que, apesar de toda a sua delicadeza, às vezes muito juvenil, aquilo que menos o preocupava era o pobre vestuário com que ia pelas ruas”. (Dostoiévski, 2004:5).

Sua mãe, Pulkhiéria Raskólhnikova o idolatrava, sendo ele a razão de sua vida. Uma ligação tão forte entre os dois que a simples menção a ela lhe causava forte impacto. Em determinado momento, Raskólhnikov recebe uma carta de sua mãe pelas mãos de Anastácia, imediatamente quer ficar sozinho e pede que moça o deixe só. Não se sentia bem, estava trêmulo e levando a carta aos lábios, beija-a. Fica um tempo contemplando o endereço numa espécie de adoração e receio. Inicia a leitura:

“Tu bem sabes como eu te quero; tu és o nosso filho único, para mim, e para Dúnia (irmã); tu és tudo para nós, toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança... Adeus, ou melhor... Até a vista! Um abraço apertado, muito apertado, e muitos beijos; a tua até a morte, Pulkhiéria Raskólhnikova.” (Dostoiévski, 2004:41)

Ele termina a leitura com o rosto arrasado de lágrimas, pálido, um tremor nervoso agitando-lhe o corpo. Na dinâmica psíquica mãe-filho, Rodka (como sua mãe o chama) personifica uma imagem arquetípica do Puer, do eterno jovem preso ao mundo materno. Raskólhnikov é um jovem alheio a objetividade da vida prática, vive no mundo interno dele, perdido em seus pensamentos, sua mente vagueia sem rumo, sonolento, indisciplinado, febril, não se importa com o que veste e nem com o dinheiro que chega a suas mãos. A displicência de um Puer que vive como se tudo fosse se resolver magicamente, que ainda não aceita o mundo do pai, não só porque está preso pelo complexo materno, mas por estar em hybris, negando sua condição mortal, na medida em que luta pra ser extraordinário e ganhar a imortalidade histórica de Napoleão. A lei paterna implica em limites, em renúncias e Rodka não quer reconhecer-se ordinário, mortal, temporal.

O senex é a contraparte do Puer, formando o par arquetípico Puer-Senex. Onde um é idéia o outro é concretização. Uma relação onde um não deve existir sem o outro, sob o risco de paralisia psíquica. O velho (senex) precisa do novo (puer) para se renovar. O senex, o mundo do pai, é quem traz limite e ordem para o puer. No caso de Raskólhnikov o pai estava morto. O pai que é fundamental na estruturação do Ego, ele é a lei e quem dá o limite entre o que é permitido e o proibido. Quem personifica a lei na história é Porfíri Pietróvitch, o policial, o homem que quer levar Raskólhnikov para o tribunal, mas não consegue obter a confissão.

Na história Raskólhnikov é órfão de pai, mas ele aparece em sonho, pelo relógio que o filho entregou para a agiota, nas citações da mãe e ainda mais amplamente, “Deus estava morto”. Aceitar o mundo do pai é sair dos braços eternos da mãe e isso Raskólhnikov só consegue após o assassinato. Devemos lembrar que quando ele procura Sônia para se confessar, primeiro abandona a mãe e a irmã. Abandonar a mãe e a irmã é o que permite a Raskólhnikov reconhecer o amor por outra mulher e aceitar as leis do mundo indo para a prisão. Como sabemos o mundo dos tribunais remete ao mundo do pai.

3.3 Demeter/Hécate

“Ela se alimenta da vida alheia, é má; ainda não há muito tempo que mordeu de raiva um dedo a Lisavieta; por um pouco quase lho arrancava fora.”

(Raskólhnikov)

Demeter é uma das representações da Grande Mãe na mitologia grega, que corresponde a Ceres para os romanos. Filha de Cronos e Réia é a deusa da agricultura, da terra cultivada, das colheitas e das estações do ano. Tem sua filha Core raptada por Hades (Deus Infernal) e desesperada sai do Olimpo e começa a vagar por nove dias e nove noites sem comer, beber ou se banhar tamanho o seu sofrimento. No décimo dia encontra Hécate representada como uma deusa anciã, personificando o lado sombrio de Deméter que a ajuda em sua busca. O mito continua, mas o que importa nesse momento é perceber a bipolaridade do arquétipo materno. Hécate é uma deusa ctônica, está vinculada as trevas, ao lado escuro, as qualidades maternas inconscientes, o feminino que habita nas profundezas. Quando Demeter se associa a Hécate encontra sua face subterrânea, seu outro lado, onde a mãe amorosa, zelosa, nutridora, se torna mãe enraivecida e destrutiva, uma deusa da morte, uma bruxa.

No Hino a Deméter, Homero nos mostra a face terrível da deusa quando se torna uma “deusa da morte” impedindo a germinação das sementes, como nos conta:

“Pela filha de cinta delgada afligindo-se em coitas.

E terrível um ano ordenou sobre a terra nutrícia

Crudelíssimo aos homens; o solo nenhuma semente

Levantava, Deméter da bela coroa a escondia..."

(Gramacho,2006:78)

Como a mãe devoradora que impede o filho (semente) de crescer, Alíona Ivânovna, velha agiota, personifica esse lado terrível da grande mãe na polarização psíquica de Raskólhnikov e ele acaba atuando projetivamente matando-a, numa tentativa inconsciente de separação do mundo materno. Ela tinha a posse do relógio do pai de Raskólhnikov, o que nos leva a crer um masculino aprisionado no reino das mães. Essa vivência do mundo do pai era difícil para um puer preso a sua mãe, mas era almejada. Como disse o protagonista de Dostoiévski: “Trago uma coisa para empenhar! - e puxou de um velho relógio de prata, de algibeira. - hei de resgatá-lo depois, porque era do meu pai. (Dostoiévski, 2004: 8)

Diante de Raskólhnikov a usurária, dona de um “olhar inquisitorial”, “velha e má" e que “se alimenta da vida alheia”, assume em seu imaginário traços de bruxa que se alimentava de seus “bens” (os objetos do empréstimo), consequentemente de sua vida. Para resgatá-los, era necessário que a “bruxa” que aprisionava sua alma morresse. Entretanto seu plano falha. Matando a “mãe devoradora” ele mata junto a imagem de uma mãe boa, a mansa e dócil Lisavieta, a irmã mais nova da velha usurária, que soube mais tarde ter costurado os botões de sua camisa.

Entendo Crime e Castigo como uma luta pelo direito de existir, pelo sentido da existência. Desde que sua noiva faleceu, falecimento comemorado por sua mãe (Demeter não quer o casamento), Raskólhnikov entra em um estado caótico. Sua tentativa de emancipação fracassou e ele tenta se libertar da mãe, projetivamente, numa atuação criminosa. O arquétipo é bipolar, no arquétipo materno coexiste a mãe boa e má personificadas na história respectivamente por Alíona (velha bruxa) e Pulkhiéria (mãe de Raskólhnikov). Quanto mais afastado da consciência mais a imagem assume uma forma mitológica. No caso Raskólhnikov não podia aceitar a mãe como má, negava seus sentimentos ruins, sua raiva por essa mãe que o aprisionante que o queria só para si e o transformava na razão de sua vida. Assim os conteúdos negativos foram depositados na velha que assumiu aos olhos do rapaz ares demoníacos e sombrios. Exterminando a velha ele estaria liberto. Entretanto não foi assim que aconteceu, pois o matricídio conclama a presença das Eríneas.

3.4 Orestes e as Eríneas

“Não são simples fantasmas que me atemorizam;

Vejo-as muito bem! Elas estão ali!

São as cadelas rábicas de minha mãe!”

(in Oréstia, 1360)

Como determinou o oráculo de Apolo, Orestes deveria vingar a morte de seu pai Agamêmnon que fora assassinado por sua mãe Clitemnestra. Ele planeja seu crime e o executa, sendo perseguido a partir desse momento pelas Eríneas, as Fúrias romanas, divindades aladas que possuíam asas de morcego e cabelo de serpente. Em Ésquilo são em número três: Alecto, eternamente encolerizada, persegue os criminosos com tochas acesas, Megera, que não deixa o criminoso esquecer os seus crimes cometidos gritando-os em seus ouvidos e Tisífone que açoita os culpados e enlouquece-os.

Orestes assim que comete o assassinato narra o aparecimento das três entidades vingadoras do matricídio:

“Ai! Ai de mim! Criadas! Já as vejo ali,

Como se fossem Górgonas, com roupas negras,

envoltas em muitas serpentes sinuosas!

Não posso mais ficar aqui! Não posso mais!”(Ibid:1355)

Na tragédia As Coéforas, Orestes é perseguido pelas Erínias, sendo o único que as vê: “Não podes vê-las, mas as vejo perseguindo-me e não tenho o direito de ficar aqui!”. Não tem como Raskólhnikov fugir de sua consciência. O coro explica a causa da alucinação de Orestes: “Há muito sangue ainda fresco em sua tuas mãos; vem dele as alucinações de tua mente.” O ataque das Eríneas representa uma desordem psicológica ligada ao horror do crime.

Raskólhnikov não era um psicopata, havia lei internalizada. Uma lei que por mais que ele quisesse negar existia, a lei moral. Vernant comenta em O Universo, os deuses, os homens, que as Eríneas representam o ódio, a recordação, a memória do erro e a exigência de que o crime seja castigado. Raskólhnikov descobre-se ordinário, vivendo atormentado pela própria consciência culpada pelo ato criminoso. As “Eríneas” não o deixam esquecer.

  • Esse texto é parte da minha monografia de conclusão da pós graduação em Psicologia Junguiana - Ana Cristina Abdo Curi / anac333@gmail.com

3 comentários:

Caio Liudvik disse...

Prezada Ana Cristina,

Muito bom o seu artigo, impressiona-me por várias razões, entre elas a capacidade que você tem de introduzir conceitos psicológicos sem recair numa interpretação reducionista da obra de arte; ao contrário, o gênio de Dostoiévski resplandece ainda mais, a essa luz criativa que vc propõe. Abraços! Caio

Ana Cristina Abdo Curi disse...

Obrigada, Caio! Grande abraço!
Ana Cristina

M. Nilza disse...

Muito bom Ana!!

Recentemente, ajudei na elaboração de um álbum de figurinhas sobre mitos egipcios. Mas, neste foco a que vc prpões é bme interessante.

Beijos