quinta-feira, 3 de junho de 2010

Arte literária e Psicologia Analítica

Jung aborda a relação entre Obra de arte e Psicologia Analítica numa palestra proferida em Zurique, na Sociedade de Língua e Literatura Alemã, no ano de 1922 e em 1930 com o prefácio “Psicologia e Poesia”. Num dos poucos escritos sobre o tema, Jung comenta a relação da psicologia com a obra de arte poética afirmando que embora a arte seja proveniente de causas psicológicas, como toda atividade humana, apenas o processo criativo é relevante para a psicologia. . Em momento algum, Jung nega a interação recíproca que existe entre obra de arte e homem criador, mas deixa claro que não se explicam mutuamente. Obra de arte e neurose não estão no mesmo patamar.

“A psicologia específica do artista constitui um assunto coletivo e não pessoal. Isso, porque a arte, nele é inata como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento. Em última instância, o que nele quer não é ele mesmo enquanto homem pessoal, mas a obra de arte. Enquanto pessoa tem seus humores, caprichos e metas egoístas; mas enquanto artista ele é, no mais alto sentido, “homem”, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade.”

Em 1930, Jung sugere dois tipos de processos criativos: o psicológico e o visionário. O primeiro é um processo de criação consciente, onde a o autor participa ativamente da construção de sua obra e dirige conscientemente o processo. As obras originadas desse processo teriam pouca importância para o psicólogo já que seus conteúdos se movimentam dentro dos limites da consciência humana. Uma “fúria divina” marca o segundo processo de criação, denominado por Jung de visionário, onde o autor da obra artística estaria sob a influência energética de um complexo autônomo, definido por ele como “uma porção independente da psique que leva uma vida própria fora da hierarquia da consciência”

Toda constelação de complexos implica num estado perturbado de consciência. Quando um complexo é ativado, podemos sentir imediatamente alterações de memória, no ritmo cardíaco, sudorese, distúrbios nos intestinos, podemos perder o equilíbrio, sentir tonteiras, ter atos falhos, enfim, a consciência perde seu domínio por alguns instantes. Há uma estranheza em nossas, palavras, atitudes e sensações somáticas. O nosso corpo não funciona da mesma maneira, o ritmo muda. Um corpo diferente se apresenta revelado pela atuação do complexo, como se tivesse um corpo próprio. O Ego não é mais senhor em sua própria casa. Por isso, Jung diz que o complexo forma uma pequena personalidade, apresentando uma espécie de corpo próprio na condição de uma personalidade parcial. O fenômeno da dissociação psíquica acontece tanto nas neuroses quanto nas psicoses e não necessariamente deve ser encarada como patologia. A psique tem a possibilidade de dissociação, sendo a unidade da consciência uma mera ilusão.

No caso do complexo autônomo a consciência encontra-se passiva e por isso a sensação de estranheza quando estamos sobre o seu efeito e podemos sentir que não somos nós atuando naquele momento. Em alguns processos criativos essa sensação aparece em primeiro plano. Em relatos de psicografia isso é muito presente e o médium sente “um outro” que está presente e atuando naquele momento, tanto que o termo que relaciona-se ao fenômeno mediúnico é “dar passividade”. No processo criativo visionário de Jung, o artista estaria numa posição semelhante a do “médium”, entretanto os conteúdos são seus, do seu próprio psiquismo, o que marcaria não um fenômeno mediúnico, mas anímico, da própria alma do autor da obra.

Como exemplo desse processo criativo visionário, podemos olhar para o próprio processo criativo de Jung que originou o “Sete Sermões dos Mortos”, como ele nos conta em “Memórias, Sonhos e Reflexões”, num capítulo intitulado “Confronto com o Inconsciente”.

Após a ruptura com Freud, começou a anotar suas fantasias e seguiu-se um período intenso de sonhos e visões, onde Jung entrou em contato com um grande fluxo de imagens interiores. As fantasias e as condições psíquicas sob as quais apareciam eram anotadas por ele. Temia perder o autocontrole e tornar-se presa fácil ao fascínio de tais imagens. Numa tentativa de assimilação, pela vivência de tais conteúdos, apesar de seus temores, experimentou o que mais tarde denominou Imaginação Ativa, onde os complexos aparecem personificados. Em sua fantasia surgiu em primeiro lugar a imagem de uma cratera e sentiu como se estivesse no país dos mortos. Ao pé de um muro alto rochoso apareceram duas figuras: Elías e Salomé que afirmavam estar ligados por toda eternidade e junto com eles tinha uma serpente negra. Em outro momento, a partir de Elias, Filemon lhe aparece para mais adiante aparecer outro personagem, que Jung denominou ka. Redigindo a respeito dessas experiências, colocou em sua mente a pergunta sobre o que estava fazendo e resposta lhe veio como uma voz interior: “O que fazes é arte”.

Foi em 1916 que sentiu um impulso incoercível de exprimir e formular os “Septem Sermones ad Mortuos”, assinando com o pseudônimo Basílides. Falando dessa experiência, Jung disse que tudo começou com uma espécie de inquietação semelhante ao que ele descreve como processo visionário de criação. Assim descreve esse momento:

“As palavras puseram-se então a fluir espontaneamente e em três noites a coisa estava escrita. Mal eu começara a escrever, toda a corte de espíritos desvaneceu-se. A fantasmagoria terminara. A sala tornou-se tranqüila, a atmosfera pura, até a noite seguinte. A tensão voltou menos intensa e tudo ocorreu da mesma forma. Isto foi em 1916”

Como vimos, o processo visionário de criação sugere um estado em que a consciência se encontra rebaixada e por isso os conteúdos do inconsciente encontram caminho livre para sua expressão. O inconsciente se impõe e a consciência fica distante do desenvolvimento da obra. O rebaixamento do nível de consciência consiste no que Janet denominou “abaissement du niveau mental”, onde o tônus da consciência se desfaz ou reduz, ao ponto de não exercer controle sobre formações psíquicas que irrompem na consciência. A imagem que brota do processo criativo tem um valor simbólico, já que ela é mais do que aparenta ser, sendo a melhor expressão de algo que ainda é desconhecido e cuja origem não deve ser procurada no inconsciente pessoal do autor.

Há então uma espécie de dualidade, onde por um lado o artista é um ser humano com uma vida pessoal e por outro é um processo criativo impessoal. Essa impessoalidade da arte estaria no fato de o processo artístico visionário ser originado de uma espécie de possessão, uma força que domina o artista e o faz mero instrumento de materialização da arte.

Como Jung não vai se preocupar com o significado da obra de arte e sim do processo criativo, a questão do sentido torna-se secundária em seus textos a esse respeito. Mas o que a arte realmente significa? Jung se faz essa pergunta e responde:

“Talvez a arte nada “signifique” e não tenha nenhum “sentido”, pelo menos não como falamos aqui sobre sentido. Talvez ela seja como a natureza que simplesmente é e não “significa”. Será que “significação” é necessariamente mais do que simples interpretação, que “imagina mais do que nela existe” por causa da necessidade de um intelecto faminto de sentido? Poder-se-ia dizer que arte é beleza e nisso ela se realiza e se basta por si mesma. Ela não precisa ter sentido. A pergunta do sentido nada tem a ver com a arte.”

Jung diz para não nos importarmos com o conteúdo da obra, mas com o processo criativo. Entretanto a reflexão sobre o conteúdo está no centro da questão entre o psicológico e o visionário, já que não existe a possibilidade de uma manifestação arquetípica pura porque o arquétipo em si mesmo é irrepresentável. Devido a isso, toda obra criativa possui algo de pessoal e suprapessoal e o processo de criação acontece na oscilação entre os dois pólos descritos por Jung: psicológico e o visionário. Estar a consciência totalmente passiva seria considerar a “morte do autor” que seria a ausência em um romance da personalidade daquele que escreveu.

Luigi Pareyson, em “Os Problemas da Estética” aborda a questão da pessoalidade e impessoalidade da arte. Considerando as duas posições ele propõe uma terceira dizendo:

“Certamente a arte contém o espírito do tempo, a voz de um povo, a expressão de um grupo, mas isso tudo contém refratado na singularíssima espiritualidade de uma pessoa porque o homem nada pensa, cumpre ou faz, a não ser pessoalmente. No mundo humano, qualquer manifestação coletiva é sempre ao mesmo tempo pessoal”

Apesar de Pareyson não se referir a conteúdos do inconsciente coletivo, sua posição é relevante para pensar que tudo que se manifesta no homem e por ele se expressa traz a marca da pessoalidade. O fato da obra ter vontade independente, uma interna finalidade, uma teleologia que oriente seu desenvolvimento, onde o artista obedece um impulso interno que o orienta na consecução da obra, não quer dizer que o artista perca a iniciativa, ficando reduzido a mero expectador. Haverá sempre uma dialética entre autor e obra.

“O artista não é nunca tão criador como quando, na sua atividade, se recorta a independência da forma, como quando a obra lhe impõe a sua própria vontade, no ato de ser produzida por ele, porque então torna-se evidente que ele, verdadeiramente, “criou”, isto é, produziu alguma coisa de vivo e autônomo, que se destaca dele e está em condição de viver por conta própria. O sinal mais evidente da criatividade é o fato de a iniciativa do artista culminar na autonomia da obra”

Continuando citando Pareyson por ser importante para o desenvolvimento do raciocínio, ele diz mais adiante:

“Na verdadeira arte, a inspiração nunca é tão determinante que reduza a atividade do artista a numa obediência, e o trabalho é tão custoso que suprima toda espontaneidade; e o que caracteriza o processo artístico é a adequação entre espera e descoberta, entre tentativa e êxito, quer esta adequação seja lenta e difícil, quer fácil e imediata”

Nesse sentido a voz do autor é e não a sua. Inspiração é uma idéia antiga, utilizada para descrever o estado em que os poetas e outros artistas se encontram no processo criativo. Mesmo no senso comum, quando precisamos nos referir a momentos de criação ou de insights dizemos “estar inspirado”. Inspiração nos aponta para um estado não comum onde há uma estranheza, uma surpresa, uma invenção, algo novo surge e por isso dizemo-nos “inspirados”. Gustavo Barcellos em seu livro “Vôos e Raizes” define inspiração como algo que vai além do controle do poeta, “diríamos do controle do ego”, como algo que vem de “fora” e esse “fora” é chamado de inconsciente. Como disse, a voz do autor é e não é a sua.

Ana Cristina Abdo Curi / anac333@gmail.com

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