terça-feira, 27 de abril de 2010

Estamira: A Loucura como sombra da sociedade capitalista.


Estamira: A Loucura como sombra da sociedade capitalista.

Esse texto é parte da palestra realizada no Encontro de Alunos e Ex-alunos da Pós-Graduação em Psicologia Junguiana

Local: Auditório do IBMR em 15 de agosto de 2009.

Palestrantes: Ana Cristina Abdo Curi e Solange Martins



“Vi ontem um bicho

Na imundice do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Manuel Bandeira



O presente trabalho visa à compreensão do que vem a ser o delírio tendo como referência a teoria junguiana e como objeto de reflexão o filme de Marcos Prado intitulado Estamira.

O mundo pós-moderno encontra-se fragmentado. Uma cultura das sensações, onde as esferas da vida social e individual são reorganizadas em função da lógica de consumo. O que não é mais consumido é descartado, e é exatamente dos restos do lixão de Gramacho que Estamira vive.

Como arte criada para as massas e produzida a partir do aparato tecnológico, o cinema introduz uma narrativa imagética que representa de forma privilegiada essa experiência contemporânea e nesse sentido, o filme de Marcos Prado, além de denunciar a lógica capitalista e apresentar a personagem em seu mundo solitário, também produz um mal-estar no espectador à medida que o implica, fazendo-o perceber, pensar e sentir o quanto próximo deste personagem nos encontramos.

É conveniente à expectativa geral manter a sombra longe da vista, pois assim a persona se perpetua. Infelizmente tal atitude subtrai do indivíduo a possibilidade de desenvolver em si a verdade sobre si mesmo.

Estamira está exposta na tela, na miséria, na dor, na negligência, na violência, no abuso sexual, e revela o quanto o poder de narrar e expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escombros e dos detritos. Através de um novo sistema de referências ela busca uma reconstrução, ela faz parte dos esquecidos do mundo, vive às custas dos restos de uma civilização, que deles nada quer saber. Através da loucura ela legitima sua existência e com uma lógica peculiar constrói um sistema de significações, tais quando profere: “aquele que revelou o homem com o único condicional”, “estou com controle remoto” ou “não existe inocente, só esperto ao contrário”. Estamira se situa no mundo, reconstruindo seu mundo subjetivo.

Estamira lê seu diagnóstico pausadamente, com um misto de resignação e indignação. Sua revolta transparece quando fala dos “copiadores de receitas”, questionando a padronização das prescrições médicas, onde toda a sua história de vida, seus sofrimentos, seus medos, sua mágoa, desaparecem, não tem voz, não importa. A singular Estamira é tragada para o mundo dos “doentes mentais” ao ser diagnosticada. Como poderemos então saber algo da Estamira com um diagnóstico tão pobre que apenas nos diz “quadro psicótico, com evolução crônica...”?

A visão médica encarcera os sujeitos da loucura em quadros nosográficos, singularidade à margem da sociedade, sendo miséria e loucura o lugar de onde os sintomas são lidos unicamente como signos da desordem subjetiva. A denúncia de Estamira nos obriga a questionar posições consolidadas, sacodem nossa alienação, nos aponta a sombra. A etimologia da palavra delírio é simples e fácil. Decompõe-se em de-desvios e liro-trilha; desvio de uma trilha, trilha esta que é a realidade. Desvio, por conseguinte, da consciência da realidade externa, em contraposição à realidade interna.

Para a psicopatologia clássica o delírio é considerado um distúrbio do pensamento, entretanto o psiquiatra francês K.W.Bash o considera um distúrbio de juízo, causado pela intuição patológica, fazendo uma correlação entre a psicopatologia e as quatro funções psíquicas apresentadas por Jung: pensamento, sentimento, sensação e intuição. Segundo Bash a avaliação ou julgamento da realidade ocorre pelo juízo que corresponde a uma atividade mental, que envolve não só o pensamento, mas todas as outras três. Sendo assim, um distúrbio de intuição patológica refletiria no funcionamento das outras funções. Torna-se relevante marcar a diferença entre o delírio e a intuição. O primeiro resiste à prova da realidade e se o pensamento for à função auxiliar o delírio sistematizado tende a cronificar.

Quando um paciente apresenta um delírio, tal como um “juízo falso ao qual se apega apesar de todas as provas em contrário”, estamos recorrendo a fórmulas verbais tecnicamente e psicopatologicamente corretas (definições), entretanto, devemos levar em consideração o que, de fato, significa para o paciente a experiência delirante, como isso se apresentou no contexto global de sua vida psíquica.

Estamira é considerada psicótica com seus delírios e alucinações que não podem ser considerados um discurso vazio. Seu delírio é uma ficção que aponta um movimento psíquico em busca de equilíbrio. Uma tentativa de ordenar o caos. Dar alguma forma ao que está fragmentado e desconexo. Estamira lança seu grito delirante numa tentativa de dar algum sentido a sua tragédia. Como personagem de sua ficção temos o “Trocadilo”, que segundo ela, “faz as pessoas viverem na ilusão e acreditar em coisas que não existem”. Na busca por algum controle alucina um “controle remoto” e ela tem uma missão: “A minha missão, além de ser Estamira, é mostrar a verdade, capturar a mentira...”. Ela tem uma verdade pra anunciar que um simples diagnóstico não revela. É preciso alguém capaz de escutar. O delírio é o seu grito.

Para Jung a equação psique = imagem é verdadeira. A forma que temos de saber da psique, produzir um logos sobre ela é através de suas imagens. Possuímos hereditariamente a capacidade de formá-las, mas cabe a consciência um olhar, uma leitura sobre as mesmas. A Psique não só possui a capacidade de formá-las, mas de alterá-las, de deformá-las, torná-las paradoxais etc. As imagens organizam-se em fantasias de acordo com um padrão arquetípico. Há um enredo e no trabalho com tais imagens é imprescindível um olhar imaginativo, pois apenas desliteralizando-o nos aproximaremos de algum sentido.

A reconstrução psíquica de Estamira se dá no contexto do lixo, é disso que se nutre, que constrói sua casa, que constitui seu lugar no mundo. “A minha missão, além de se Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira (...) Você é comum, eu não sou comum (...)Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim, sem a Estamira”. A personagem do filme vive a sombra da sociedade e reflete esse lado negro do sistema capitalista. Estamira denuncia uma verdade social e aponta a necessidade do sistema olhar para seu lixo. "Isso aqui é um depósito de restos. Às vezes é só resto e às vezes vem também descuido. Resto e descuido". Ninguém pode viver sem Estamira. Não é apenas a voz de uma "louca" se auto-explicando e explicando ao mundo que a fez ser como é e no qual ela vive do jeito que é possível: bruta, enraivecida, solitária, sofrida; vendo o mundo como um lugar de violência, conspirações, barbaridades, falsidades, genocídio, em que cada um tem que ser seu próprio herói, seu próprio Deus, seu próprio mito e seu próprio guia, auto-construindo seu próprio sentido de vida.

Estamira contracena com a função mítica e mística das vozes, ao falar para si mesma, ela denuncia um Deus injusto; acusa a médica de fornecer os mesmos remédios ano após ano, e que nada adiantam; questiona em em quais momentos de lucidez existe loucura ou seu contrário, e apresenta de modo inusitado a “união das coisas contrárias”, e no centro das coisas contrárias está Estamira: “eu sou esta mira”, exclama tornando-se o alvo.

Estamira se apresenta no filme ao lado de sua filha mais nova que a declara uma ótima cozinheira, fazendo transparecer o arquétipo da grande mãe, porque mesmo na miséria e mergulhada no sofrimento psíquico, soube cuidar dos filhos de alguma forma.

Estamira representa o lado sombrio de uma sociedade destituída de afeto. Seu delírio não é apenas fruto de uma história individual, não é meramente o discurso de um doente. A voz de Estamira é a voz do lixão do Gramacho, de seus integrantes, de seu cotidiano de excluídos e de todos nós.



Citações:

“A série de acontecimentos aparentemente tão absurdos , as “loucuras”, adquire, de repente , um sentido; descobrimos um sentido no sem-sentido, conquistando, assim, uma aproximação mais humana do doente mental. Ele é uma pessoa que sofre dos mesmos problemas humanos que nós, e nem de longe é uma máquina cerebral em desordem.(Jung, 1914)

"Em vez da união, o evitamento e a separação tornaram-se as principais estratégias de sobrevivência nas megalópoles contemporâneas. Não há mais a questão de amar ou odiar o seu vizinho. Manter os vizinhos ao alcance da mão resolve o dilema e torna a opção desnecessária; isso afasta situações em que a opção entre o amor e o ódio se faz necessária.” (Bauman, Globalização as consequências humanas, 1999)

"Chegamos ao ponto, em que a comercialização dos modos de vida, não encontram mais resistências estruturais, culturais ideológicas, e onde as esferas da vida social e individual são reorganizadas em função da lógica de consumo” (Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio,2004)

“A primeira vez que a vi pensei que fosse uma mãe-de-santo com uma certa importância no local. Aos poucos fiquei admirado por aquela figura meio metafísica e mística. Percebi que ela era uma espécie de Arthur Bispo do Rosário”. (Marcos Prado)

“Eu transbordei de raiva. Eu transbordei de ficar invisível com tanta hipocrisia, com tanta mentira, com tanta perversidade, com tanto trocadilo...fez o homem expor ao ridículo pra eles. Fez o homem pior que um quadrúpulo. Então deixasse que ohomem como fosse antes de ser revelado o único condicional” (Estamira)

“ Vocês vão pra escola pra copiar!!...diz ela ... "Até meu neto de dois anos sabe disso. Ele que ainda não foi pra escola copiar.... hipocrisias, mentiras e charlatagens." (Estamira)



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