quinta-feira, 27 de novembro de 2008


O Rei Leão
(A Individuação de um Rei)




Esse trabalho se fundamenta na importância do estudo sobre os Mitos para a compreensão do pensamento e obra de C.G.Jung. Com esse objetivo, proponho uma leitura do filme “O Rei Leão”, animação de longa metragem da Walt Disney Pictures lançado em 1994, desenvolvendo um olhar mítico e apontando elementos que possam contribuir para a compreensão do conceito de individuação da Psicologia Analítica.Tal processo é o conceito base de um “pensar junguiano”, caracterizando-se como um caminho permeado de energias arquetípicas em contato com as experiências vividas. No mundo, nas situações cotidianas, arquétipos são constelados. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por vontade própria.Sem a pretensão de esgotar o tema ou reduzi-lo a uma simples fórmula, objetivo introduzir alguma reflexão sobre a individuação de Simba, um filhote de leão, aquele que nasceu pra ser rei, herdeiro do rei Mufasa e sua rainha Sarabi e protagonista de uma história que tem encantado adultos e crianças.
“Tudo isso que o sol toca é o nosso reino”
O Reino são as terras que estão sob os cuidados e proteção do soberano Mufasa, o justo, forte e corajoso pai de Simba, nosso protagonista. O filme marca sua trajetória. Aquele que nasceu pra ser rei precisa descobrir-se um rei e não simplesmente herdar o lugar do pai. É o grande “Ciclo da Vida” onde o novo renova o velho num contínuo renascimento. Quando digo “descobrir-se um rei” refiro-me a um processo de revelação da personalidade que Jung denominou Processo de Individuação, onde o ser humano é um tornar-se, um constante vir-a-ser, não sendo algo definível e imutável, mas dinâmico e mutável. Necessário então que algo do “velho” morra, para que novas possibilidades de existência sejam reveladas. O Reino de Simba será o seu reino, com seu “colorido” e não mais uma mera continuação do reinado paterno. É necessário sair das terras do reino, descobrir onde o sol não toca, onde não se tem o domínio da consciência, abrindo um espaço de diálogo com os conteúdos inconscientes representados no filme pelos personagens habitantes “do outro lado”, onde existe um cemitério de elefantes. A experiência de transpor os limites das terras do reino, entrar em contato com “aquele lugar escuro” torna-se fundamental, mas a voz do pai ecoa em “Fica além de nossa fronteira, jamais deve ir lá, Simba”. O que fazer, então???Simba vai visitar o tio em sua caverna, eufórico e extremamente orgulhoso da sua condição de príncipe herdeiro. Seu pai tinha acabado de lhe mostrar suas terras e a dimensão delas e ainda havia lhe dado aulas sobre como caçar. Muito feliz diz que “mal pode esperar pra ser rei”. “Meu pai me mostrou tudinho”, diz ele ao tio que retruca ‘Ele não te mostrou o que está além do planalto na fronteira norte?”. O leãozinho então conta ao tio que foi proibido de ir lá, num tom de pleno respeito à orientação paterna. Entretanto Scar percebe o orgulho de Simba e o manipula dizendo ao sobrinho que seu pai tinha razão de proibir porque só os leões mais corajosos vão lá. Simba que em seu momento encontrava-se identificado e seduzido pela grandiosidade e força da imagem paterna, não suporta se deparar com a idéia de ser fraco e muito menos covarde, aspectos inaceitáveis na sua imagem de leão e muito menos de herdeiro do rei. Covardia e fraqueza são inadmissíveis na sua persona de leão. Tais conteúdos estão sombrios pra Simba, na Sombra, numa dimensão psíquica não iluminada e aceita pela consciência. Nesse momento não há diálogo psíquico possível e devido a unilateralidade da consciência, numa posição de identificação com a persona, nosso protagonista reage planejando a ida ao cemitério de elefantes.Simba desobedece ao pai e mente para mãe dizendo ir ao “olho d’água” e parte na aventura de conhecer o cemitério. Nessa aventura ele é acompanhado por sua amiga Nala e Zazu o seu “anjo da guarda”. Na tentativa de zelar pelo filho, Sarabi exige que Zazu vá junto, delegando ao pássaro os cuidados com seu filho e a tarefa de mante-lo longe de perigos. Entretanto, Simba sabia que não iria ao olho d’agua e desvia do caminho combinado com sua mãe. Zazu percebe e tenta convencer o leãozinho a seguir de volta para o reino. O pequeno pássaro sabia do perigo que os esperava. Um castor tinha sido porta-voz de “notícias do submundo” e advertido para a presença das hienas nessas terras. Zazu acompanha Simba e Nala atento e preocupado. Quando tenta mais uma vez mostrar a Simba o quanto era perigoso, esse exclama com toda força “Eu ando na selva brava, eu rio na cara do perigo”. Nesse momento, naquele ambiente cinza e árido, onde ossadas de elefantes são visíveis escutam-se terríveis risadas. De uma gruta, surgem Banzai, Shendi e Eddi, seres malignos, esfomeados e de humor negro, as hienas anunciadas pelo castor. Aproximam-se de Simba e dizem “sabe o que fazemos com rei que pisa fora do seu reino??? Nesse momento, nosso protagonista vive a experiência do medo e foge, mas só consegue finalmente livrar-se de ser devorado pelas hienas devido a chegada de seu pai. As hienas temem o rei e vão embora. Momento importante para uma tomada de consciência em relação a sua fragilidade. Algo que racha a identificação com a persona paterna e a inflação egóica. Medo e fragilidade são constelados, o que leva Simba a perguntar ao pai “Pai, nós sempre estaremos juntos, não é?”. Nesse apelo, a necessidade de segurança se faz presente num Simba assustado. Busca a promessa de que seu pai estará sempre com ele, numa situação urobórica paterna, de confiança primordial baseada no logos, numa palavra, através de uma promessa de que nunca o deixará só ou o abandonará. Se essa situação permanecesse nosso protagonista não se tornaria um herói. A situação de confiança básica ou primordial não pode permanecer por toda vida, porque é impossível garantias de segurança. A vida é dinâmica, a confiança plena insustentável e a traição inevitável. Na dinâmica psíquica vemos que o inconsciente trai constantemente os desejos do Ego que tende a inflexibilidade e ao fechamento em busca de segurança e estabilidade, reduzindo suas possibilidades de vir-a-ser. Mufasa não poderia atender ao pedido do filho. Ele não estaria sempre com ele pelo próprio ciclo da vida.Mufasa é vítima de uma emboscada organizada pelo seu irmão Scar, que coloca seu sobrinho propositalmente numa situação de perigo para atraí-lo. Tentando salvar o filho, que foi deixado por Scar com a seguinte recomendação “Espere aqui, seu pai tem uma surpresa maravilhosa pra você. Espere nessa pedra, não quer que isso termine numa confusão como você fez com as hienas... teve sorte do papai estar lá para te salvar”, Mufasa morre pelas mãos do tio de Simba, que o deixa cair de um desfiladeiro.Simba vê o pai morto. Pede ajuda ao tio sem desconfiar do ocorrido. Ele confia no tio, a traição não é uma possibilidade. Para Simba seu pai jamais o trairia e o tio, seu conselheiro e confidente também não. Sentindo-se acusado por Scar, diz que foi um acidente e não quis que isso acontecesse. “Mas o rei está morto e se não fosse você ainda estaria vivo... e o que sua mãe vai pensar”, insinua Scar. O nosso protagonista foge seguindo a orientação do tio. Lançar em Simba a suspeita de ele ter “assassinado” o próprio pai constela conteúdos com os quais sua consciência não está preparada para dialogar e ele foge amedrontado. A possibilidade da consciência dialogar com conteúdos que emergem do inconsciente pressupõe flexibilidade do Ego, tornando-a capaz de conviver com o conflito, geri-lo e não, reprimi-lo, paralisá-lo e/ou esconde-lo.Desacordado, o filhote é encontrado dois seres perdidos num mundo hedonista, Timão, um furão e Pumba, um javali, que lhe apresentam um lugar “paradisíaco” onde o lema é “Hakuna Matata”, o que significa esquecimento dos problemas, não a regras e responsabilidades. “Quando o mundo vira as costas pra você, você vira as costas para o mundo”, orienta Timão. Mesmo não sendo o que lhe foi ensinado Simba entra nesse mundo e com o tempo vai se identificando com os habitantes dali. O tempo passa e Simba cresce. Agora não é mais um filhote de leão. Possui uma respeitável juba, mas ainda inconsciente de si mesmo. “Virar as costas” pode ser entendido como voltar-se pra direção oposta, mudar a direção energética. O processo de individuação faz com que a libido se movimente em duas direções. Tais movimentos são denominados de progressão e regressão. Progressão quando a energia direciona-se ara o mundo externo visando ação e adaptação e Regressão quando a mesma retorna ao mundo interno. É nesse eterno movimento para “dentro e fora”, para “frente e ara trás’, que a individuação se faz. O mundo do Hakuna matata é o domínio do arquétipo do Puer, o reino da eterna juventude, onde nosso herói encontra abrigo. Puer e Senex são componentes eternos do nosso psiquismo e cumprem uma função em nossa vida psíquica. São como duas faces de uma mesma moeda, um “arquétipo de duas cabeças”. A individuação envolve essas duas energias psíquicas. Não podemos esquecer que nosso herói nasceu para ser rei e é esse o sentido teleológico da trama, muito bem apresentada pelo personagem Rafiki, um velho babuíno que possui o poder da predição. Tornar-se rei é a revelação de um potencial de Simba no mundo, é assumir sua condição especial, ou melhor dizendo, sua especificidade. Para um potencial realizar-se é necessário a capacidade de materialização dos sonhos, fantasias e idéias no mundo, até então perdido no “reino encantado” do puer. É preciso sair do “Éden’, confrontar-se com sua orfandade, suportar a angústia de ser sóEnquanto Simba está num mundo “sem problemas”, o seu reino está tomado por forças sombrias. Encontra-se devastado, cinzento, árido, abandonado. Zazu, o elo de ligação entre pai e filho encontra-se preso numa jaula servindo de distração para Scar. Simba precisa voltar ao reino, retomar seu destino e para “acordar-lo” de seu sonho pueril uma imagem de anima adentra os domínios do Hakuna Matata. Nala surge perseguindo Timão e Pumba e quando está prestes a alcançá-los surge Simba em defesa dos amigos. Os dois lutam inicialmente sem reconhecerem-se, mas após uma imobilização de nosso protagonista por um golpe da leoa, eles conseguem ficar frente a frente. Simba a reconhece e a alegria toma conta dos dois que se apaixonam. Após apresentar seu novo mundo a Nala, ela diz “Você está vivo e isso significa que você é o rei... tem que voltar!”. Com a resistência do leão ela se mostra decepcionada e sai contrariada. Simba sob o impacto de tal visita sai pensativo exclamando “Não posso mudar o passado”. É acompanhado sem que perceba por Hafiki, que pressentiu a passagem de tempo. Como um sábio, segue com Simba sem se impor e percebe que era chegado o tempo propício para uma grande revelação. Simba percebe o seu canto, o babuíno seguia cantando, e ao avistá-lo indaga quem era ele??? O nosso sábio profeta devolvendo a pergunta diz “A pergunta é quem é você?”. Não havendo resposta por parte do nosso leão, o babuíno esclarece “mas eu sei...claro que sei...você é filho de Mufasa”. Hafiki sai e Simba o segue perguntando se ele conhecia seu pai. “Correção... eu conheço seu pai... está vivo e vou mostrar” é resposta. Surpreso e meio atônito nosso herói segue o visionário até um lago e olha seu reflexo na água. Decepcionado exclama ser só o seu reflexo, não seu pai. A imagem se transforma e ele vê Mufasa refletido na água. Hafiki esclarece afirmando “Ele vive em você”. Simba entra em conexão com a energia paterna até então esquecida e reprimida e “escuta” sua voz, a voz do pai ecoa, num momento de tomada de consciência do pai que existe nele, o seu Mufasa lhe diz: “Simba, você esqueceu-se de mim, esqueceu quem você é. Olhe para dentro de você... você é muito mais do que pensa que é. Você tem que ocupar seu lugar no ciclo da vida.”O tema da reflexão aparece em muitas estórias e mitos, em alguns representa um perigo com no caso de Narciso, em outros não. Jung o considera um instinto, pois não há como deter esse mecanismo psíquico de autoconhecimento. O reflexo é uma necessidade psicológica. No caso de Simba , o reflexo da imagem paterna esquecida, o tira da puerilidade marcando um momento de tomada de consciência de conteúdos positivos embora esquecidos de sua personalidade total. A constelação do Senex o tira de uma paralisação pueril e a libido retorna em direção ao mundo. Um novo movimento psíquico se estabelece e nosso herói retoma seu destino.Simba chega ao reino e o vê devastado e leva um choque. Sarabi, sua mãe, junto com os demais leões vivem a mercê dos caprichos de Scar e das hienas. Personagem forte marca sua importância por manter o diálogo vivo entre leões, hienas e Scar após a morte do rei e “desaparecimento” de seu filho, assumindo a função de intermediar as relações com os opressores após a tomada de poder. Presenciando uma cena em que sua mãe relata a Scar não haver mais comida no reino e esse lhe dá uma patada na face, Simba aparece rugindo com toda a sua força. Agora Simba é capaz de olhar a verdadeira face do tio, entrar em contato com o lado sombrio do pai, confrontar-se com sua sombra. Scar pede para o sobrinho contar quem foi o responsável pela morte do rei e Simba que dessa vez não foge diz “Fui eu, foi um acidente”. O fogo arde num clima de grande tensão. Simba está prestes a ser jogado pelo tio num desfiladeiro, igual ao seu pai, quase uma repetição, quando escuta a confissão do tio “Eu matei Mufasa”. Assim, Simba joga Scar no desfiladeiro onde é morto pelas hienas.Chove muito no reino, o fogo foi apagado, algo que remete a um banho, batismo, renascimento. Nasce um novo rei, não mais um herdeiro, um rei é revelado. A situação do reino muda e ele volta a florescer. Simba se casa com Nala, aquela que enquanto imagem de sua anima o iluminou com sua visita e o chamou de volta ao seu destino. Dessa união nasce a linda Chiara e o ciclo da vida continua, mas isso é outra história.
BIBLIOGRAFIA
1. Brandão, Junito de Souza. Mitologia Grega v.II, ed. Vozes
2. Hillman, James. Estudos de Psicologia Arquetípica, ed. Achiamé
3. Jung, Carl Gustav. Fundamentos de Psicologia Analítica, ed. Vozes
4. Jung, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, ed. Vozes
Ana Cristina Abdo Curi
anac333@gmail.com

2 comentários:

Oozeslime disse...

Oi Ana,

Li seu blog, muito bom! Depois vou falar pra Bibi ler.

Bjs,
Robson

Anônimo disse...

Bela interpretação! Excelente trabalho.