segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


CINDERELA
Existem várias versões para a história de Cinderela ou Gata Borralheira. As mais conhecidas são as de Perrault (no séc. XVII, na França) e a dos irmãos Grimm(1785 e 1863). Entretanto na China do séc. IX D.C. já se falava da heroína dona de um incomparável pezinho. Pés pequenos para os chineses era um sinal de virtude extraordinária, de distinção e beleza sendo um costume na China antiga enfaixar os pés das mulheres para torná-los extremamente pequenos.
Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, retomam esse conto intitulando a sua versão de "Aschenputtel") que aponta para uma pessoa que deve “vigiar” as cinzas da lareira. Cendrillon (em francês) e "Cinderella" (em inglês) é conhecida em português como Borralheira, ou Gata Borralheira. Cinzas (ashes) ou borralho (cinders), conta Bettelhein são muitos os exemplos na língua alemã de que o fato de ser forçado a viver entre as cinzas simbolizava não só uma degradação, mas também a rivalidade fraterna, e de como no final o irmão em questão vencia os outros que o humilharam. “Na Alemanha, por exemplo, havia histórias onde um menino que vivia entre as cinzas, mais tarde se tornava rei, de forma comparável à de Borralheira.” (Bettelhein, pag. 252). No próprio conto foi deixado bem claro que o nome Cinderela foi dado como uma forma de desmerecimento: “E por andar toda suja e cheia de cinza, só a chamavam de Cinderela”.
Bruno Bettelhein, em A Psicanálise dos Contos de Fadas, cita o trabalho de Stith Thompson, como a melhor análise dos temas dos contos folclóricos e enumera os temas que aparecem na "Borralheira” dos Irmãos Grimm como: uma heroína maltratada; ser obrigada a viver junto à lareira; o presente que pede ao pai; a nogueira que planta no túmulo da mãe; as tarefas exigidas à heroína; os animais que a ajudam a realizá-las; a mãe transformada na árvore que Borralheira plantara no túmulo e que dá a ela as lindas roupas; o encontro no baile; a fuga por três vezes de Borralheira do baile; esconder-se primeiro no pombal e depois numa pereira, que é derrubada pelo pai; a armadilha feita de pixe e a perda do sapato de ouro e prata; o teste do sapato; as irmãs mutilando os pés e sendo aceitas como noivas (falsas); os pássaros que revelam o logro.
Para a Psicologia Analítica, esses temas devem ser visualizados como o processo de individuação da protagonista, onde todos os personagens da história apontam para o mundo psíquico da personagem principal do conto e onde a seqüência dos acontecimentos, a forma como eles se desenrolam é de uma importância ímpar para compreensão das tonalidades alquímicas refletidas na história do próprio conto.
“O negrume ou "nigredo" é um estado inicial, sempre presente no início como uma qualidade da "prima materia", do caos ou da "massa confusa"; pode também ser produzido pela separação dos elementos (solutio, separatio, divisio, putrefactio). Se o estado de divisão se apresenta de início, como acontece algumas vezes, então a união dos opostos se cumpre à semelhança da união do masculino e feminino (chamado o coniugium, matrimonium, con-iunctio, coitus), seguido pela morte do produto da união (mor-tificatio, calcinatio, putrefactio) e seu respectivo enegrecimento. A partir da "nigredo", a lavagem (ablutio, baptisma) conduz diretamente ao embranquecimento, ou então ocorre que a alma (anima) liberta pela morte é reunida ao corpo morto e cumpre sua ressurreição; pode dar-se finalmente que as múltiplas cores (omnes colores) - a "cauda pavonis" (cauda do pavão) - conduzam à cor branca e una, que contém todas as cores. Neste ponto, a primeira meta importante do processo é alcançada: trata-se da "albedo", "tinctura alba", "terra alba foliata", "lapis albus", etc., altamente valorizada por muitos alquimistas como se fosse a última meta. É o estado lunar ou de prata, que ainda deve alçar-se ao estado solar. A "albedo" é, por assim dizer, a aurora; mas só a "rubedo" é o nascer do sol. A transição para a "rubedo" constitui o amarelecimento (citrínitas), se bem que como já observamos este é suprimido posteriormente. A "rubedo" sucede então diretamente à "albedo", mediante a elevação do fogo à sua maior intensidade. O branco e o vermelho - Rainha e Rei - podem então celebrar suas "nuptia chymicae" (núpcias químicas).”(Jung. vol.XII parag. 334)
Vejamos então alguns aspectos alquímicos do conto...
A história de Cinderela começa com uma despedida. Sua mãe (esposa de um rico comerciante) adoeceu e sentindo que seu fim estava próximo mandou chamar a filha:
- Querida filha, continue piedosa e boa menina, que Deus a protegerá sempre. E lá do céu olharei por você, e estarei sempre ao seu lado – mal acabou de dizer isso, fechou os olhos e morreu.
Doença, morte, perda e decomposição da matéria remetem a operação alquímica da mortificatio com aspectos de putrefactio, onde acontece a decomposição orgânica de corpos mortos. Associações possíveis seriam, num aspecto negativo, o negrume, a derrota, tortura, morte e apodrecimento, entretanto existe um aspecto de renascimento, onde algo em nós deve morrer e às vezes é preciso apodrecer para que possamos transmutar nossas vidas e revelar novas possibilidades de existência. Uma fase relacionada a esse momento é a nigredo, o escurecimento, o momento em que o “chão se abre” e nos sentimos tragados para um mundo infernal, escuro, o caos. O “chão se abriu” para Cinderela e sua querida mãe viajou para a obscuridade do inconsciente. A mãe boa precisava morrer e morre para que o processo de Cinderela seja possível. Um início com muita dor, mas com a promessa materna de estar sempre ao lado e isso veremos mais adiante no conto.
A partir da morte de sua mãe, nos diz o conto, Cinderela chorava muito e todos os dias visitava o túmulo da mãe. “Veio o inverno e a neve cobriu o túmulo com seu alvo manto. Chegou à primavera, o sol derreteu a neve, e o viúvo tornou a se casar”. Uma passagem de tempo que além de cronológica é psíquica, um período de luto com as lágrimas da protagonista. A água das lágrimas e mesmo da neve e a umidade do inverno cobriram o túmulo de sua mãe por uma longa estação. Cinderela estava afogada em lágrimas. A fase alquímica pertencente à água é a solutio cujo equivalentes simbólicos podem ser o banho, a chuva, a imersão na água, lágrimas, orvalho etc.. Essa passagem não é apenas cronológica, marca transformações psíquicas. O fato de o túmulo ser coberto com o “alvo manto de neve” é muito interessante. Falamos na nigredo enquanto o enegrecimento e agora a imagem do conto aponta um embranquecimento, fase da Albedo, que nesse momento pode ser interpretado como o período de luto estar chegando ao término. Entretanto, quando as coisas parecem mais calmas com “a chegada da primavera”, o pai resolve casar novamente e o ambiente torna-se cinzento, como se algo da nigredo retornasse mesmo depois de algum embranquecimento (cinza=preto+branco).
O pai casa-se e sua nova esposa tem duas filhas, “ambas louras e bonitas, mas só exteriormente...tinham a alma feia e cruel”. As filhas da madrasta possuindo semelhança externa mas qualidades opostas as da protagonista, personificam no conto aspectos sombrios da psique de Cinderela. Obedecendo ao pedido materno de que sempre fosse piedosa e boa menina, internaliza esses valores e sua consciência unilateraliza-se nos conteúdos aprovados pela mãe. Na dinâmica psíquica, toda unilateralidade constela no inconsciente o seu oposto e assim entram na história as filhas da madrasta, personificando qualidades sombrias e reprimidas do inconsciente da personagem central. Para Jung, é na sombra que encontramos o caminho da nossa individuação e talvez por isso a madrasta e suas filhas tenham uma função tão importante no conto. Segue o conto...”Então começaram dias difíceis para a pobre enteada...”.Em sua nova família, Cinderela é forçada a trabalhar nos serviços mais pesados e suportar todos os tipos de humilhação. Obrigam-na vestir um vestido velho e desbotado, calçar tamancos, levantar de madrugada para buscar água e acender o fogo e não tem um quarto, tendo que dormir sobre as cinzas do fogão “por andar toda suja e cheia de cinza, só a chamavam de Cinderela”.
Certa vez o pai foi a uma feira e a filha pediu para ele trazer o primeiro ramo que batesse em seu chapéu. Trouxe um ramo de aveleira que foi plantado no túmulo da mãe e suas lágrimas foram tantas que regaram o ramo que cresceu como uma linda aveleira, aonde a menina ia sempre, todos os dias chorar e rezar debaixo dela. “A aveleira e seus ramos, especialmente nas mitologias célticas e germânicas, relacionam-se com a sabedoria da sinceridade – o salmão sábio que comeu as avelãs que cresciam à beira d’água pode aconselhar os heróis” (M. L. Von Franz, 1980). Em relação a versão germânica de Cinderela, pode-se especular a aveleira como árvore da sabedoria, um eixo de conexão com o Self, árvore que promove uma religação do Ego da personagem com o sagrado. Cinderela chora e reza embaixo da árvore que mais tarde jogará ouro e prata na sua preparação para o baile. Ouro e prata correspondem na alquimia ao sol e a lua, princípios masculino e feminino. Nessa árvore os opostos estão reunidos em sua copa e na base há o túmulo de sua mãe.
Um dia o rei mandou anunciar o baile que duraria três dias e todas as jovens bonitas do reino seriam convidadas pois o seu filho escolheria sua futura esposa. Cinderela pergunta a madrasta se poderia ir e depois de muita insistência tarefas são-lhe impostas. Se cumpridas corretamente ganharia o direito de ir à festa. A tarefa consistia em catar as lentilhas despejadas nas cinzas do fogão, separando as boas das ruins, em 2 horas. Pássaros ajudam e ela conclui a tarefa. Entretanto, mesmo tendo cumprido a tarefa, não obtém a permissão da madrasta que lhe passa uma tarefa mais difícil. Teria que separar dois tachos de lentilhas misturadas nas cinzas do fogão em 1 hora. Novamente ajudada por pássaros conclui a tarefa, mas mesmo assim a madrasta e filhas seguem para o baile sem ela.
Catar, separar é um processo de discriminação, que na alquimia caracteriza a separatio, uma operação de divisão da consciência em contrários, em opostos. É a entrada na dualidade pela conscientização dos contrários. No caso de Cinderela, a imagem da separação de lentilhas em boas e ruins marca esse processo em que a unilateralidade da menina sempre meiga, bondosa e piedosa se quebra. Poder ver os dois lados de uma questão aumenta a capacidade de discernimento e contribui para avaliar e julgar as situações de uma forma menos sentimental. Lentilhas misturadas nas cinzas é uma imagem de indiferenciação, de inconsciência. Os animais a ajudam nessa tarefa e por isso consegue concluir a tempo. Pássaros e a separação do puro e do impuro remetem a outra operação alquímica, a sublimatio. Entretanto tanto nesse momento quanto no momento em que um pássaro branco, do alto da árvore, joga um vestido de ouro e prata para ela, o movimento não é ascendente. Os pássaros descem, não se elevam. Temos assim uma sublimatio inferior, onde que foi intuído desce a matéria, coagulando-se (coagulatio).
Cinderela vai ao baile, num vestido dourado, feito com o ouro e prata cedidos pela árvore e jogados pelo pássaro. Seus sapatos eram feitos de seda bordada de prata. Dança a noite inteira e volta pra casa deixando seu vestido sobre o túmulo, onde um passarinho o pega e leva-o para árvore. Na terceira e última noite do baile, o seu vestido, jogado pelo pássaro sob a árvore, é ainda mais suntuoso e brilhante e seus sapatos são de puro ouro.
O ouro na alquimia é a pedra filosofal. Quando os alquimistas falavam de transmutação de metais para chegar ao ouro significava, simbolicamente, um processo de transmutação da alma que Jung chamou Individuação em que “O nosso ouro não é vulgar”. O ouro puro, resultado da opus é representada pela fase Rubedo, o nascer do sol. Em Psicologia Analítica, o ouro puro seria a realização do Si-mesmo na matéria. A realização da personalidade em sua totalidade, que seria o fim da obra, o que sabemos ser impossível mesmo psicologicamente, porque a obra nunca termina. “Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável “(V.6/2 p.266). Isso é o ouro para Jung, esse ser único revelado na matéria, no contado com o próprio mundo. Uma revelação que nunca termina um trabalho que não tem fim.
Nessa noite ela perde um dos sapatinhos, pois o príncipe havia passado pixe no degrau do castelo. Ao chegar a casa dela, as filhas da madrasta experimentam primeiro. Uma corta o dedo fora para caber no sapato e a outra um pedaço do calcanhar. Ambas são denunciadas por duas pombas. O príncipe olha e descobre a farsa ao ver as meias manchadas de sangue. Chega a vez de Cinderela que o experimenta e o sapatinho lhe cai como uma luva. O príncipe então a reconhece. Segundo Bruno Betthelhein “há variações da história, em que Borralheira toma a iniciativa de ser reconhecida, em vez de esperar passivamente. Numa delas o príncipe lhe dá um anel, que ela coloca dentro de um bolo que ele comerá; ele diz que só se casará com a moça em quem couber o anel.”
O conto termina com o casamento e “Subitamente, sem que ninguém pudesse impedir, a pomba ousada no ombro direito da noiva voou para cima da irmã mais velha e furou os olhos. A pomba do ombro esquerdo fez o mesmo com a mais nova, e ambas ficaram cegas para o resto das vidas”.
Ana Cristina Abdo Curi
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA


Bettelheim, Bruno.(2002). A Psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra.


Edinger, E.(1990). Anatomia da psique. São Paulo: Cultrix


Jung, C.G.(2000). A Vida Simbólica. Petrópolis: Vozes [OC, vol.XIII/2]
----------------(1990). Abreação, análise dos sonhos, transferência: Petrópolis: Vozes [OC, vol. XVI/2].
----------------(2003). Estudos Alquímicos. Petrópolis: Vozes [OC, vol. XIII]
----------------(1991). Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes [OC, vol XII]


Penteado, Maria Heloisa.(2006). Contos de Grimm. São Paulo: Ática [Cinderela]


Von Franz, M. L.(1980). O significado psicológico dos motivos de redenção nos contos de fada. São Paulo: Cultrix