quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009



Vênus ao Espelho (1647)
"Diego Rodríguez de Silva y Velázquez foi um importante pintor espanhol do século XVII. Destacou-se na pintura de retratos, principalmente de integrantes da nobreza espanhola. Fez parte do movimento artístico conhecido como barroco."http://www.suapesquisa.com/biografias/velasquez.htm


Corpo e Individuação
Um dia, Zeus seduziu a ninfa Eurinome e dessa união nasceram as três Cárites ou Graças: Aglaia (a brilhante), Eufrosina (jovialidade) e Tália (a fecunda). Encarnação tripla de encanto e beleza essas três jovens tornam-se auxiliares especiais das divindades do amor Afrodite e Eros.
O homem anseia o belo, isso é uma verdade. Outro dia ouvi um médico do ramo da medicina estética dizer: "Cabe a ela (med. estética) apenas atender aos anseios do inconsciente coletivo e como uma manifestação artística, criar, manter e melhorar a Beleza Humana".
A Medicina Estética como a "arte médica do belo" surge atendendo ao ideal da beleza e com a promessa de prazer, felicidade e perfeição. Porém, somos mortais! Nosso corpo, por mais que o alteremos visando à manutenção da juventude, sofrerá as ações do tempo e das leis da natureza. Acreditar que a juventude eterna é possível é um estado de inflação egóico, uma hýbris, como diziam os gregos. Uma desmedida, onde o Ego, sob o domínio do arquétipo do Puer (eterna adolescência), vive inconsciente de outra possibilidade de existência, o Senex (velho sábio), e porque não dizer, de outro modelo de beleza.
Por serem arquétipos, o Puer e o Senex, são componentes eternos do nosso psiquismo e cumprem uma função em nossa vida psíquica. São com duas faces de uma mesma moeda. A forma como vamos vivenciar o processo de envelhecimento corporal envolve essas duas energias arquetípicas. Podemos alterar nosso corpo, melhorar a nossa aparência física, mas isso por si só não garantirá alegria, prazer e perfeição. É essa a grande falácia do marketing da medicina estética. O tempo é inexorável e perfeição corporal não é atributo humano. Ou será que pretendemos parar o tempo? Cronologicamente, por mais "conservados" que estejamos, a nossa capacidade física sofre com os desgastes do tempo. Sisifo tentou ludibriar Tanatos (morte) e foi condenado a rolar infinitamente uma pedra até o cume da montanha e vê-la voltar.
Não quero dar a impressão que sou contra ao que a tecnologia estética pode nos oferecer. Afinal, comecei dizendo que o ser humano anseia o belo. O que penso é que vivemos numa cultura que exalta uma única possibilidade de ser belo. Em nossa sociedade há o predomínio dos ideais juvenis, onde a imagem do adolescente está no comer, no vestir, na estética pessoal. A beleza física com o avanço tecnológico torna-se um produto dominante no mercado. A busca pela beleza projeta-se na esfera social, seguindo as regras do capitalismo e culturalmente padecemos com o efeito disso. Ser fisicamente belo torna-se condição de aceitação social e o que é considerado fisicamente feio é objeto de discriminação. Ficamos socialmente reduzidos a supremacia de um único modelo de beleza, que é o da juventude. A velhice é quase vista como doença e a maturidade quase uma decadência. Numa cultura voltada para o ter, o ser é de menos importância. O valor pessoal fica projetado em objetos valorizados pela coletividade. Esses objetos têm que ser adquiridos, ou tem-se ao menos que passar a impressão de que os adquiriu. Assim a dimensão da Persona sofre uma hipervalorização, na medida em que identificamos o nosso valor pessoal com os objetos que conseguimos conquistar. Cito Jung:


"A identidade da individualidade com o objeto equivale a sua inconsciência. Ora, se o indivíduo for inconsciente não haverá um indivíduo psicológico, mas simplesmente uma psicologia coletiva da consciência. Nesse caso, a individualidade inconsciente aparece identificada com o objeto, projetada no objeto. Por conseguinte o objeto reveste-se de valor exagerado e atua com determinação demasiadamente intensa" (Jung, vol.6/pág.527)


O conceito de Identidade foi definido por Jung em sua obra Tipos Psicológicos como um fenômeno inconsciente que se fundamenta na indiferenciação, ou seja, num estado de igualdade inconsciente entre sujeito e objeto . Por isso a individualidade nesse estado de igualdade, ou identidade como o objeto, equivale a sua inconsciência. Para que o indivíduo psicológico exista é necessária a separação do objeto. Onde há fusão não há relação. No caso da individualidade se achar fusionada com o objeto esse hipervaloriza-se, pois eu não estou em relação com o objeto, eu sou ele. Num estado de identidade com a Persona, o Ego não se relaciona com ela, mas ele é ela. Tal estado abafa o indivíduo bloqueando o movimento psíquico de Individuação.
Persona é um termo grego que Jung introduziu em sua obra psicológica e designa a máscara, a forma como nos apresentamos socialmente. Ë um arquétipo, pois é uma predisposição psíquica universal que dá estrutura a experiência da adaptação ao meio. Cada cultura tem um conjunto de papéis a disposição das pessoas para a sua expressão. O Ego tende a adotar papéis que o farão valorizado e aceito. A Persona é a forma pela qual nos apresentamos ao mundo. Ela se revela no tipo de roupa que escolhemos, nos objetos que almejamos possuir e no nosso estilo de expressão corporal. É a imagem corporal o nosso principal cartão de visita.
Jung coloca duas fontes da Persona: as expectativas e demandas do meio e a segunda as ambições do indivíduo. Sendo assim, a formação da Persona exige uma adaptação a condições externas e internas do indivíduo e por isso, um compromisso. Um acordo deve ser estabelecido entre o indivíduo e a sociedade. Em diversos momentos e situações da vida há possibilidade de novas personas serem formadas. O corpo como expressão da persona funciona como um campo que reflete os vários compromissos que o Ego faz com o meio ambiente visando a adaptação. Entretanto o corpo é mais do que Persona.
Quando me refiro ao corpo como campo, tento passar a imagem de um lugar onde vários arquétipos encontram a possibilidade da expressão. Jung em seu ensaio "Considerações Teóricas sobre a Natureza do Psíquico" representa a psique como um espectro, que se estende do pólo infravermelho ou instintivo, ao pólo ultravioleta ou espiritual.O arquétipo é, em si, uma forma básica irrepresentável, transcendente, mas que se torna representável quando entra em contato com a consciência. Em si, o arquétipo pertence a parte ultravioleta do espectro psíquico e a psique biológica instintiva ao infravermelho psíquico. Ambos penetram num domínio psicóide que jamais pode torna-se consciente e onde não existe a dicotomia entre corpo e alma. A separação ocorre no nível perceptivo da consciência que os experimenta como entidades separadas. Jung afirma:


"Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo, e, além disso, se acham permanentemente em contato entre si, e em última análise, se assentam em fatores transcendentes e irrepresentáveis, há, não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa".Jung vol.8/parág.418


Mais a frente em seu ensaio:


"Alma e corpo são a expressão de uma só entidade…os dois constituem uma só realidade, e acomete-nos a dúvida se, no final de contas, toda esta separação entre corpo e alma nada mais seja do que mero expediente da razão para que percebamos os dois lados da mesma realidade"vol8/parág.619.


Se o corpo é o campo por onde os arquétipos encontram a sua expressão, a persona não possui domínio pleno do corpo. A sombra também se revela e por vezes de forma tão intensa que a expressão mais acertada seria o "diabo no corpo".


"…O corpo é o nosso amigo mais duvidoso, por produzir coisas que não gostamos; há inúmeros fatos a ele relativos que não podem mesmo ser mencionados. Por isso ele frequentemente se presta à personalidade do lado sombrio do Ego. As vezes representa o esqueleto escondido no armário, e todo mundo, naturalmente, quer se ver livre disso". Jung v18p.40.


O termo Sombra vem do grego "synápodos", aquele que anda atrás. Andar atrás é uma maravilhosa imagem da sombra, pois ela representa algo que o Ego não domina e na maior parte das vezes nem tem consciência dela. A sombra é complementar a persona e pode ser pensada como um lugar onde "personalidades parciais" habitam. São personalidades secundárias dissociadas da consciência e muitas delas não encontram uma expressão criativa devido ao grau de inflexibilidade do Ego. Mas estão lá e buscam expressão, vida corporificada.


“Da mesma forma que a matéria corporal, que está pronta para a vida precisa da psique para se tornar capaz de viver, assim também a psique pressupõe o corpo para que suas imagens possam viver” vol8/parág. 618.


O corpo exerce uma função no processo de individuação. Como expressão do inconsciente, pode trair as expectativas da consciência e por vezes de forma tão avassaladora que é sentido como um ato de violência. Algo irrompe no corpo e nos atordoa. Esse algo que vai de um tremor quando não podíamos tremer, uma paralisia quando o movimento era necessário, uma taquicardia que nos faz dar atenção ao nosso coração, até uma doença grave e crônica, não são apenas sintomas, são símbolos que revelam algo sobre a mulher ou homem que se escondem atrás da máscara e que quer entrar no campo da consciência. Sombra representa tudo aquilo que somos incapazes de reconhecer sobre nós mesmos e o que é reprimido, ignorado, negligenciado pela consciência é compensado pelo inconsciente.
A relação entre o inconsciente e a consciência é um ponto central para compreendermos o funcionamento psíquico que Jung nos propõe. A psique abarca esses dois mundos psíquicos, que estabelecem uma relação auto-regulada por uma função compensatória dos processos psíquicos. O Sintoma físico pode ser visto como um efeito da ação compensatória do inconsciente, cujo propósito (telos) é dar uma nova direção a libido que ficou retida pela unilateralidade da consciência, promovendo assim, a possibilidade de um novo caminho para o desenvolvimento da personalidade. O Sintoma nessa perspectiva despatologiza-se, sendo compreendido como um movimento originário do inconsciente a serviço da individuação. Citando Arnold Mindell: "A linguagem corporal é como a linguagem onírica. Fornece indicações que a mente consciente ainda não é capaz de dar". Por meio do corpo somos colocados em movimento físico e psíquico. A Sombra que se revela no corpo tem a finalidade de "despojar o si mesmo dos invólucros falsos da Persona" e retomar o diálogo entre inconsciente e consciência, e com isso o movimento psíquico da individuação. Como disse Jung:


"Quando o inconsciente não é acompanhado corretamente, isto é, quando não encontra expressão através da consciência ou de uma ação consciente, então ele amontoa sua libido no corpo” (Jung, 1939-carta ao senhor S.)


Para encerrar, lembrei de uma reportagem que vi na revista Veja. O depoimento era de Kathleen Turner , talentosa e linda atriz de Corpos Ardentes. Hoje, aos 50 anos narrava a sua difícil trajetória desde o aparecimento dos primeiros sintomas da artrite reumatóide, grave doença degenerativa que ataca as juntas e articulações. O seguinte parágrafo me chamou a atenção:


"Costumo dizer que essa é uma doença que não acaba com a sua vida, mas com seu estilo de vida". Até ficar doente, eu não percebia quanto condicionava a minha auto-estima à minha imagem. Ao me ver combalida, enfrentei uma crise de identidade. Perguntava-me o tempo todo: "Quem sou eu? O que será feito do meu trabalho e da minha vida? Tive de enfrentar isso e priorizar outros aspectos da existência".


Questionamentos como esses são comuns quando nos deparamos com situações semelhantes a essa. Começamos a questionar, porque eu? O que será da minha vida agora? Quem sou eu? A estima fica abalada, pois a imagem que a sustentava é quebrada e sendo assim exige uma nova adaptação interna (ao próprio conteúdo do inconsciente) e externa (meio ambiente e valores da consciência). Nessa nova adaptação outros aspectos da existência de Kathleen foram "priorizados". Uma crise de identidade teve de ser enfrentada e por consequência natural, uma nova Persona teve de ser estruturada. O corpo já não era mais o mesmo e denunciava algo. Priorizar outros aspectos da existência é poder o Ego se relacionar com outra possibilidade de ser, com conteúdos talvez anteriormente negligenciados e sombrios. Enfim, por meio da doença corporal, outro estilo de vida se estruturou, novos conteúdos foram chamados ao diálogo e outra Katthleen nasceu.
O Processo de Individuação é marcado pelo constante renascimento e é com o corpo que a psique renasce.
Ana Cristina Curi